segunda-feira, 15 de março de 2010

Conto - Quer uma música mocinha?

Muita gente me chamou de louca quando decidi trabalhar no sistema público de saúde. Escutei desde um “Você vai ganhar uma merreca” até “Você não estudou numa faculdade tão boa pra fazer esse tipo de serviço”. Na verdade não sei explicar o porquê, meus colegas acreditam que são as pessoas que nos motivam, mas acho que no meu caso foi uma pessoa em especial.
Eu cursava o último ano de enfermagem e fazia a minha residência no pronto socorro do hospital municipal. Aquele era um sábado cheio, dois atropelamentos, intoxicações alimentares, briga de gangues e um garoto com queimaduras graças um acidente com fogos de São João.
No meio de toda aquela bagunça um senhor me chamou a atenção, não por reclamar da demora do atendimento ou de dores, mas por cantar na maca improvisada no corredor. Parecia que o dedo indicador que lhe havia sido amputado era o menor de seus problemas. Cantava “João e Maria”, “Casinha Pequenina”, “Menina das Duas Tranças”, embora fosse estranho também era intrigante.
Por volta das 18 horas o movimento tinha diminuído bastante, parei ao lado da maca onde ele estava deitado e nem precisei puxar assunto:
- Quer uma música mocinha? – Perguntou ele se levantando.
- Não obrigada. – Respondi – Eu gostaria de saber se o senhor está sentindo dores ou se precisa de alguma coisa.
- Dor eu to sentindo um pouquinho, mas estou bem.
- Que mal lhe pergunte, mas o que aconteceu com o seu dedo?
- A minha mulher cortou fora, estávamos brigando e então... Ele tava com a faca na mão...
- É incrível, mesmo com um problema desses o senhor não para de cantar.
Ele respirou fundo:
- É numa hora dessas que eu posso esquecer de tudo, do emprego que eu não tenho, da esposa infiel que tenta me matar... Mesmo com a dor.
Naquela hora fui chamada para prestar socorro aos novos pacientes que acabavam de chegar.
- Eu tenho que ir.
- Qual o seu nome menina? – Perguntou como numa bravata.
- Larissa. – Respondi. - Quando você voltar vou te oferecer uma música Larissa. – Se despediu com um sorriso e acenando com a mão machucada.
Depois de duas horas atendendo os novos feridos, tinha até esquecido da promessa feita pelo nosso “Pavaroti” de plantão. Porém, quando passei de novo ao lado da maca escutei um verso muito familiar:
- Menininha do meu coração, eu só quero você a três palmos do chão... Menininha não cresça mais não fique pequenininha na minha canção... Essa era a música que meu pai cantava para me ninar, não pude conter as lágrimas.
Algumas semanas depois, eu estava encerrando o meu plantão quando vi aquele gentil senhor dar entrada no hospital novamente, dessa vez com um ferimento nas costas. Quando me viu abriu aquele enorme sorriso e me perguntou:
- Quer uma música mocinha?
- Quando eu voltar quero sim.
36 horas depois entrei novamente no plantão e recebi uma péssima notícia, aquele gentil senhor faleceu esperando atendimento no corredor. A facada havia perfurado um dos rins e a demora no tratamento resultou em uma infecção gravíssima.
Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá poderia fazer alguma coisa, ou que o sistema público de saúde é um grande ceifador de vidas. É por pessoas como ele que continuo o meu trabalho, pra que algumas músicas não deixem de ser cantadas.
Esse texto e vários outros estão disponíveis no site: www.autores.com.br/ViniciusMachado

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